verso, prosa e frases soltas, gritos na noite, pulso que pulsa, meia-verdade, meia-justiça e um grilo falante

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Epitáfio

Não me olhem e digam: 
- era tão novo e acabou assim 
                                      [é assim que tudo acaba.
Não pensem: poxa, se não tivesse feito aquilo... talvez...
- o “se” não redime a carne, 
                                      [não a salva dos vermes.
Não declamem louvores a Deus por sobre minha carcaça: 
era sua hora...
                                      [não, não era.
Acima de tudo, não afirmem categoricamente: era um menino tão bom...
                                      [nunca somos.
Pobre morte, cercada pela comédia humana
                                      [ à direita o medo, à esquerda a hipocrisia

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O Corvo

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.


É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,


Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.


É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.


Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.


"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,


Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."


Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,


Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".


Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais


Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,


Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,


Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,


Libertar-se-á... nunca mais!

de Edgar Allan Poe
tradução de Fernando Pessoa

domingo, 26 de julho de 2015

Solidão na parada de ônibus

Uma rua estranha,
Um banco desconhecido.
Deserto.
O ruído seguido do vento
de um ônibus que não era o seu.
Domingo à noite.
A falta de alguém
a dizer verdades e mentiras.
Encolhido,
um cão velho e rabugento.
E uma longa sensação de iminência
Que nada vai acontecer.

sábado, 25 de julho de 2015

Baile de Máscaras




















A tristeza do Pierot
A lágrima do crocodilo
A fidelidade da Colombina
O gargalhar da hiena
A amizade do Arlequim
O amor do Carnaval
O elogio do invejoso
O lamento da carpideira
A cegueira da justiça
A humildade do vencedor
O reconhecimento do vencido
O abraço do candidato
A simpatia do vendedor
A culpa do governo
A beleza da playboy
O dinheiro da loteria
A fé do condenado
A pena do carrasco
O poder do rei
A bravata do mais forte
A cautela do mais fraco
A democracia do rico
A mais-valia do comunista
O medo do patrão
O sêmen do empregado
A droga do filho
A virgindade da filha
O celibato do padre
O abraço do estuprador
O beijo de Judas
O gozo da prostituta
A morte do indigente

Na sarjeta os ilustres e miseráveis se confundem,
No clube os burgueses quebram regras,
No salão as máscaras valsam sozinhas, já não precisam de corpo, rodopiam e enchem todo o ar de hipocrisia e luxúria.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Preguiça

Da suicida

para os alunos do CFCH–UFPE

Tua paixão me apavora,
Certeza do nada
Trocada numa vida.

Teu olhar não consola,
O vazio, fio da espada,
Rasga a dor sem saída.

Teu corpo cai na aurora,
Outrora, flutuava,
Jaz então esquecida.


quarta-feira, 22 de julho de 2015

Ah, mar! Ao mar! 

Ah, mar! Ao mar! Ao amar, há mar, amar o mar, mar o amor, ô, mar, amor é o mar e o mar é amar na linha do horizonte.

As sereias amam sua sedução, os capitães amam o ouro que reluz no sangue, os marinheiros, as prostitutas do porto, eu, o amar.

Estar no mar é amar onde não dá pé, é mergulhar e não alcançar o chão. O mar é amar na linha do horizonte. 


segunda-feira, 20 de julho de 2015

Namikaze Satellite

Quero juntar as núvens que saíram
à força e com a crista das ondas,
Eu voarei além.
Embora o caminho esteja ficando assustado e perigoso,
Eu sigo em frente no sonho que eu desenhei.
O tempo está nos apressando,
Tornando nossas decisões precipitadas,
E mesmo se estamos acordados enquanto sonhamos,
Eu sigo por aquela mesma luz.
Sob esta noite brilhantemente estrelada,
Há centenas de constelações e sombras.
E diante disso tudo o que somos,
Por que me olha tão fixamente?
Snorkel
Tema da 7ª abertura do anime Naruto. Considerando que o original é em japonês, a fidedignidade da letra fica pra próxima.

O teu olhar



Fotos no atelier de Francisco Brennand, Recife.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Linhas.



Linhas.

Linhas do corpo,

Linhas de pensamento,

Linhas que marcam,

Linhas que rasgam,

Linhas entre a vida e a morte,

Transversais que formam cruzes,

Paralelas que se encontram no infinito.

Passaporte



Seguro tuas mãos como a água que cai de uma fonte, para que nada escorra, nem tua essência entre meus dedos.

Deito o olhar demoradamente sobre teu rosto, não posso deixar que nenhum detalhe passe desapercebido.

O roubo, o assassínio, a extorsão, nada disso me levaria ao inferno.

Mas qualquer pequena negligência para contigo não seria perdoada por nenhum dos deuses ou homens.

Não, não, não... não posso parar de te olhar, porque a lembrança de tua face servirá de passaporte para o paraíso.

-Fiz coisas erradas como todos os homens; mas olhe o que vi, a boca que beijei, o sentimento que senti e me diga que não mereço uma vaga ao Vosso lado...

ou consentiria, ou não seria Deus.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Tríade do sabor eterno



Lua. Sobre mim o desejo, a consagração.
Crua. Sem tempo, sem prumo, sem rota, sem mundo.
Nua. Corpo que o dia usurpa. Negros belos cílios.
— Toda tua. Beija-flor azul escuridão.
Paixão. Cegueira dengosa que não partilho.

Sol. Sorrisos à mesa, garfos e facas. Puxo
Conversa. Cachos soltos rendem a visão.
Jatobá floresce mil anos. Nosso filho
É vida, movimento, carinho. É tudo.
Deuses invejam: glória, família e ação.

Olhos fechados. Sua beleza, meu suspiro.
O dia chama lá fora — à luta, ao luto.
Sobre a cama, entre as colchas, meu coração.
Prazer adiado para melhor curti-lo.
Louca, a boca calada me chama. Eu fujo.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Perfume difuso





Amor. Como explicar este sentimento controverso? Como resumir o montante de memórias, sonhos, desejos, sensações vividas por dois? O amor é algo que foge às raias de uma definição reta, cientifica, devido à infinitude de possibilidades que representa. Só pode ser visto uno — percebido concreto — no casal de namorados; no homem e na mulher que renunciam o tempo-relógio para degustar o tempo-pulsação.

Quando o perfume invade minhas tardes, a boca arrasta minha pele, a pele desliza entre os dedos. Quando o castanho escuro dos cabelos clareiam a vista, afagam o rosto, avivam nossa história. Quando o corpo desperta no meu a vontade de mergulhar na forma das coxas, dos seios. De entender a parte e o todo.
Com base na experiência que reservei a uma única mulher, ser poesia, construo a rede de significados para entender o amor. Palavra que, antes de conhecê-la, era reservatório de vazio e percepções alheias.