verso, prosa e frases soltas, gritos na noite, pulso que pulsa, meia-verdade, meia-justiça e um grilo falante

sábado, 19 de agosto de 2017

umas gotas

A chuva e sua magia de deixar homens absortos, abrigados nalgum lugar, mirando incontáveis quilômetros adiante, mesmo que só vejam paredes e calçadas molhadas. Se ela cai na espera do último ônibus, que tarda e falha; turva, a luz dos postes, refletida no asfalto, se contorce em espelho d'água. Centenas de formiginhas nadam desesperadas, formando circulozinhos, círculos e circulozões que brigam uns com os outros. Coisa nostálgica isso de chover. As gotas forçam a lembrança de outras gotas antigas, suas parentes, e com elas vêm todo o nosso passado, pingando na memória imagens, sons e cheiros de outras chuvas, outras gotas mais minhas, mais salgadas. A brisa e o vento forte vêm impregnados de humanidade, soprando no rosto os lugares por onde têm passado, de tão úmidos, num respirar mais forte, regam por dentro, lavando a alma, levando-a a outros.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

"Quando a dor parecer plena
eu irei te encontrar
numa estrada perigosa
Quando a dor bater
Quando a luz bater
Quando a dor bater
Quando a luz bater"

Lirinha

Sistema lacrimal clipe

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Nem só de vertigem é que se vive,
Cavalgando sem ter redia e cela.
Por fim, o chão nos colhe em hora triste.
Ou de logo sacamos o paraquedas.

Não! Estou decidido que não existe.
Tampouco a loucura nos encarcera,
Há uma sensatez no dedo em riste.
Sufoco os gritos na sala de espera.

Lei, moral, com regras e mandamentos.
Mesmo que para com eles zombar,
Repetimos, aplainando o cimento.

Nem só de poesia a desvairar,
Bela, vã, inutil, futilidade.
Pouco de prosa dá ar de verdade.

terça-feira, 27 de junho de 2017

Sério que você não tem medo?

-Escute-me, amigo, a lua está alta no céu. Você não tem medo? O desamparo que vem da natureza. Esse luar, pense bem, esse luar mais branco que o rosto de um morto, tão distante e silencioso, esse luar assistiu aos gritos dos primeiros monstros sobre a terra, velou sobre as águas apaziguadas dos dilúvios e das enchentes, iluminou séculos de noites e apagou-se em seculares madrugadas…Pense, meu amigo, esse luar será o mesmo espctro tranquilo quando não mais existirem as marcas dos netos dos seus bisnetos. Humilhe-se diante dele. Você apareceu um instante e ele é sempre. não sofre, amigo? Eu… eu por mim não suporto. Dói-me aqui, no centro do coração, ter que morrer um dia e, milhares de séculos depois, indiferenciado em húmus, sem olhos para o resto da eternidade, eu, EU, sem olhos para o resto da eternidade… e a lua indiferente e triunfante, mãos pálidas estendidas sobre novos homens, novas coisas, outros seres. E eu Morto! - respirei profundamente. - Pense, amigo. Agora mesmo ela está sobre o cemitério também. O cemitério, lá onde dormem todos os que foram e nunca mais serão. Lá onde um menor sussurro arrepia um vivo de terror e onde a tranquilidade das estrelas amordaça nossos gritos e estarrece nossos olhos. lá onde não se tem lágrimas nem pensamentos que exprimam a profunda miséria de acabar.

Clarice Lispector. "Mais dois bêbados".

quarta-feira, 14 de junho de 2017

O URUBU MOBILIZADO

Durante as sêcas do Sertão, o urubu
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
êle, que no civil que o morto claro.
 
                  2.
 
Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
Com que age, embora em pôsto subalterno:
êle, um convicto profissional liberal.
 
 João Cabral de Melo Neto

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Beslan, Rússia

Entendo os vampiros —
Sua sede de sangue.
O homem furtou-lhe
A imagem do espelho,
Unindo a saudade
Do deus e da Besta.
Os buracos desta
Calçada suja
Conheço de cor
Dó, cor, dor mor — tal
O que é um corpo
Dentre outros trezentos?
Dos canibais, o hálito
Perfuma o planeta,
E minha TV
Sufoca uma mãe
Que chora por isso.


 

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Na Superfície

Aprendia a nadar nos meus braços, 
em água salgada.
O corpo era pequeno, leve,
O rosto de menino.
Cabelos pretos, livres, pele amorenada.
Não sabia que lembrava com tanta nitidez.
Mesmo em sonho me assustou
Reconhecê-lo naquela idade.
O sorriso maroto.
Confiava em mim como fosse
Impossível o mundo fazê-lo afundar.
Eu o protegia enquanto adulto, 
Mas não me sentia assim. 
Estava frágil.
Ele ria como sempre riu de tudo.

Um suspiro depois:
Eu quem boiava agora,
Nos braços de meu primo.
Um pouco mais velho que
Quando, pela última vez,
Rezei-lhe entre flores.
No cabelo, então, algum grisalho. 
A água, morna e calma.
Cobria boa parte de mim, 
Batendo às vezes no ouvido.
Infiltrou a minha essência, 
Preencheu um pouco do meu vazio, 
da saudade.
Ria como sempre riu de tudo.
Só que mais seriamente.
Não que estivesse triste. 
Queria me dizer algo
Ou eu queria que ele me dissesse.
Simples estar ali era um prazer
E um privilégio.
Não caberia pedir mais.
Mesmo em sonho.

Mantinha algo escondido.
Seria o às da canastra 
ou uma história inconfessável?
Impossível o mundo fazê-lo afundar.
Afogar-nos-íamos todos em dor
Antes do meu primo desfazer o sorriso.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Minha vaidade é ilimitada
e os meios para satisfazê-la
são escassos:

Não por espaço, tempo ou capital;

Com base na quantidade de perfis 
Que meu post consegue agradar.

Para um princípio econômico das redes sociais.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Perecer da tarde.
Reinício da noite.
A onda sempre
Quebra na mesma praia.
Seriam talvez novas ondas,
Noutras areias. 
Nunca saberei.