verso, prosa e frases soltas, gritos na noite, pulso que pulsa, meia-verdade, meia-justiça e um grilo falante

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Mulher que lê

Que lê a mulher?
Uma carta, livro, um manifesto?
O que faz?
Ri sarcástica, sente muito, delira?
O que pensa a mulher?
Na saudade, na vida, na supressão,
Na virtude?
O que esconde?
Veneno, uma bomba, o brilho do olhar,
Uma poesia?
O que quer a mulher?
Gozo, recato ou, perigosamente,
Não sabe se quer?
Que lhe move?
Uma filosofia, romance, o homem,
A liberdade, a fofoca?
O que é, afinal, esta mulher que lê?
Santa, mãe, esposa, prostituta, amante,
Feminista, secretária, irmã?
Dê-me um rótulo para encerrar esta
Ameaça!

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Almenara


“Almenara – os dicionários e enciclopédias explicam – era um fogo, uma luz que se acendia nas atalaiais ou torres de antigas cidades. Para dar sinais, avisar o povo sobre o movimento de tropas inimigas ou da chegada de piratas e assaltantes, servindo, ainda, para enviar mensagens, quando transportada de uma área para outra. Anunciava também a deposição do rei. Permanentemente acesa, guiava os caminheiros da noite. É um farol de terra, um nome antigo de candeeiro, a defesa luminosa de um burgo em tempo de perigo.”
Mario da Silva Brito, na orelha de Almenara (Lucila Nogueira; 1979)

AOS OLHOS REPRESADOS PELO TANQUE


Como aves da mata, sim: selvagem.

Como a vida suspensa sob a lança.

Como os raios, a chuva e como o vento

batendo contra os álamos na sombra.



Contra os muros e grades, sim: selvagem.

Contra os falsos brasões da tolerância.

Selvagem como o eterno movimento

do mar em seu assomo de esperança.



Selvagem. Solidão que irradia

no desprezo das cômodas estâncias.

Selvagem. Como humano cata-vento

movido em primitivas reentrâncias.



Selvagem. Como a intérmina coragem

numa luta impossível como gigantes.

Selvagem como o amor solto no ventre

como o fuso que fere mas descansa.



Sim: selvagem. Por isso tão liberta

tendo auroras e guizos nas entranhas.

Sim: selvagem. Por isso tão estranha

aos olhos represados pelo tanque.



Lucila Nogueira, Almenara, 1979

Nascida no Rio de Janeiro em 30/03/1950, filha de pai português e mãe pernambucana. Falecida em 25/12/2016. Uma poetisa consagrada sem raízes, no exílio de si.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

20 anos

se não me mata, fortalece.
mesmo que cale,
renascerei na terceira flor da primavera. 
ademais, nada difere
depois vazio do vazio dantes.
inclusive agora,
sou uma entre as infinitas probabilidades 
de não estar.
então, se for para ser, que seja.
amém.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

O poder

O poder.
Nova palavra nascida ali para o seu novo vocabulário. mas esta não nascera de uma reflexão, fora vomitada pelo corpo, assim como se esvaía em merda e urina, para matar as necessidades mais próximas.
o poder.  aqueles vermes tinham poder sobre os outros - algo estranho acontecera para que alguns deles, fardados como uma unidade de guerra, dominassem os outros, esfarrapados como um bando de mendigos.
o poder era aquilo - uma voz mais poderosa e que tinha meios mais poderosos para o domínio. o poder e o domínio - o confinamento de uma parcela de homens, o poder nas mãos de uma parcela de vermes.

Assis Brasil, Os que bebem como cães. 1975.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O futuro

Pedófilos
Os que têm medo da história;
De um outro profundo.
Os que do ovo não vêem 
Além da casca.
Pedófilos
Os que rezam ao seu prazer
Sem capturar a dor.
Os que estraçalham o futuro
Por uma farsa presente.
Pedófilos
Os que estupram uma democracia 
Tratando o povo como criança. 

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Ferreira Gullar, amigo de Clarice Lispector

Ferreira Gullar, amigo de Clarice Lispector, quando soube de sua morte (1977):

Na vertigem do dia

Enquanto te enterravam no cemitério judeu
do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós

sábado, 3 de dezembro de 2016

Eu existo

Eu existo.
O nome fora da Placa.
Rosto que não tará nas fotos.
Desgarrei do rebanho.
Morri. Nasci. Remorri. Renasci.
Retornei.
E digo: Eu existo!
Só que já vou indo...
- Até logo, ou até quando
eu não existo.