verso, prosa e frases soltas, gritos na noite, pulso que pulsa, meia-verdade, meia-justiça e um grilo falante

sábado, 27 de janeiro de 2018

Guerra e Paz

Grande indignação teria sido a sua, se sete anos antes, ao desembarcar, de regresso do estrangeiro, alguém lhe houvesse dito que nada tinha nem a procurar nem a imaginar, pois o seu caminho de há muito estava traçado para sempre e que fizesse ele o que fizesse viria a ser o que haviam sido todos os outros na mesma situação do que ele! Pois não desejara, de todo o seu coração, implantar a república na Rússia ou ser um Napoleão ou um filósofo, ou o estratego que venceria o imperador? Não fora ele quem julgara possível a regeneração do gênero humano e apaixonadamente a desejava, contando chegar ao mais alto grau de aperfeiçoamento moral? Não fora ele quem fundara escolas e hospitais e dera liberdade aos seus servos?

E em vez de tudo isso, que era ele afinal? O marido rico de uma mulher infiel, um camarista reformado, o bom copo e o bom garfo que, à vontade depois de um bom jantar, se põe comedidamente a criticar o governo. E ali estava o membro do clube inglês de Moscovo e ai-jesus da sociedade moscovita. Durante muito tempo custou-lhe a acreditar que era isso mesmo, o tipo do camarista moscovita na inatividade, essa personagem a quem tão profundamente desprezava sete anos antes.

Por vezes consolava-se dizendo ser apenas momentânea a vida que levava, mas logo o aterrorizava a ideia de que muitos como ele também se haviam dado momentaneamente a tal vida, àquela existência de clube ainda com todos os cabelos na cabeça e todos os dentes na boca, tendo chegado ao fim carecas e desdentados.

Nas suas horas de orgulho, quando se punha a refletir no que era, dizia de si para consigo não se parecer em coisa alguma com esses tais camaristas a quem outrora desprezara, com essas criaturas vulgares e estúpidas, contentes e satisfeitas consigo próprias. «Eu, pelo contrário, atualmente, não me sinto satisfeito com coisa alguma, continuo a desejar fazer seja o que for para bem da humanidade», pensava então. «Mas, quem sabe? Também eles, atualmente meus companheiros, se atormentaram assim, procurando como eu um novo caminho na vida e, tal como eu, vítimas da força das circunstâncias, do meio, do nascimento, escravos desta tirania dos elementos contra a qual o homem nada pode, todos eles se viram arrastados para a situação em que eu próprio estou», dizia de si para consigo nas horas de modéstia. E ei-lo que depois de alguns meses de Moscovo, em vez de os desprezar, pusera-se a amá-los, a estimá-los e a lamentá-los, como se eles fossem ele próprio, esses seus pobres companheiros de infortúnio.

Já o não assaltavam, como antigamente, momentos de desespero, desgosto e hipocondria. A doença, que antes se lhe manifestava por violentos acessos, fora recalcada para o seu íntimo, sem por isso deixar de o atormentar. «Para quê? Porquê? Que drama se representa no mundo?», perguntava-se a si próprio, angustiado, muitas vezes ao dia, procurando, debalde, compreender o sentido dos fenômenos da vida. Sabendo, porém, que as suas interrogações ficariam sem resposta, dava-se pressa em desviar delas o pensamento. Pegava num livro, ia até ao clube ou punha-se a tagarelar com Apolo Nikolaievitch sobre os escândalos da cidade.

«Helena Vassilievna, que nunca amou nada além do seu belo corpo e é uma das mais estúpidas mulheres à face da Terra», repetia Pedro com os seus botões, «aos olhos do mundo é como que o supra-sumo do espírito e da inteligência, e toda a gente se prosterna diante dela. Napoleão Bonaparte, enquanto foi um grande homem todos os desprezaram, e agora, que não passa de um desprezível comediante, até o imperador Francisco lhe ‘oferece a filha por concubina. Os Espanhóis rendem graças a Deus, por intermédio do clero católico, por lhes haver concedido derrotarem os Franceses no dia 14 de Junho e os Franceses fazem outro tanto, por intermédio do mesmo clero, por no mesmo dia 14 de Junho igualmente terem vencido os Espanhóis (Alusão ao cerco do Convento de Santa Cruz, pelo marechal Ney, em Junho de 1810. (N, dos T.). Os meus irmãos pedreiros-livres juram, pelo sangue das suas veias, estarem prontos a tudo sacrificar por amor do próximo, e não se dignam dar um rublo sequer no peditório para os pobres. E intrigam, tomando o partido da Astreia contra o dos Buscadores do Maná, prestando-se a todas as baixezas para conseguirem o verdadeiro ‘tapete’ escocês e uma acta que ninguém percebe, nem mesmo aquele que a redigiu, nada significando, nem tendo qualquer préstimo. Todos nós professamos a lei cristã, que manda perdoar as injúrias e amar o próximo, e em nome desta lei erigimos em Moscovo quarenta vezes quarenta igrejas (Antigo hábito eslavo de contar por quarenta. (N, dos T.), embora ainda ontem açoitássemos de morte um desgraçado desertor a quem o ministro desta mesma lei de amor e perdão, o sacerdote, deu a cruz a beijar antes do suplício.» Assim meditava Pedro, e esta geral hipocrisia, aceita por todos, apesar do hábito que dela tinha, todos os dias o revoltava como se fosse um caso novo.

«Sinto-as, vejo-as por todo o lado, esta hipocrisia e esta cegueira», prosseguia ele ainda, «mas onde arranjar palavras para explicar-lhes tudo quanto tenho a dizer-lhes? Sempre que o tentei, pude verificar que lá no fundo eram todos da minha opinião, mas que se negavam a reconhecer o facto. É possível que assim tenha de ser! Mas eu, que destino será o meu?...» Pedro gozava deste triste privilégio, frequente em muitos homens, mas especialmente nos Russos, graças ao qual, embora acreditem na verdade e no bem, com tanta clareza vêem o mal e a mentira dos humanos que lhes faltam forças para os combater a fundo. A seus olhos, todos os domínios da atividade humana estavam imbuídos do mal e da mentira. Fizesse o que fizesse, tentasse o que tentasse, sempre se sentia repelido por esta mentira perpétua: todas as vias da atividade humana se lhe fechavam. E no entanto era preciso viver, algo tinha de fazer, apesar de tudo. Deixar-se esmagar sob o peso destes problemas insolúveis, eis o que se lhe afigurava horrível, e por isso mesmo, quanto mais não fosse para esquecê-los, entregava-se ao que quer que houvesse a fazer. Frequentava todas as sociedades, bebia muito, colecionava quadros, erigia castelos no ar e lia, lia principalmente.

Lia, lia tudo o que lhe vinha à mão, e de tal maneira que até mesmo à noite, quando o criado o ajudava a despir, continuava a ler. Finda a leitura, vinha o sono, e, findo o sono, era a conversa dos salões e do clube, da conversa passando às orgias e às mulheres, e, das orgias, voltando outra vez à conversa, à leitura e ao vinho. Beber tornara-se para ele uma necessidade ao mesmo tempo física e moral. Não obstante a opinião dos médicos, que o advertiam de quanto o vinho lhe era prejudicial devido à sua corpulência, continuava a beber furiosamente. Não se sentia bem senão quando, quase inconsciente, depois de despejar uma boa dose de copos de vinho, sentia então por todo o corpo uma agradável sensação de calor, e todo ele era ternura para com o semelhante e tendência para abordar todos os problemas sem ir ao fundo de nenhum.

Só depois de haver despejado uma ou duas garrafas percebia vagamente que aquele nó tão terrível e complicado da existência, nó que o enchia de horror, era afinal menos medonho do que ele imaginava. Com a cabeça a zumbir, falando, ouvindo as conversas alheias ou lendo após as refeições, a seu lado lá estava sempre aquele nó que era preciso cortar. Apenas sob a ação do vinho, porém, dizia de si para consigo: «Não é nada. Hei-de desatá-lo... Sim, tenho uma explicação ao meu alcance. Por agora falta-me tempo. Depois pensarei nisso.» Este «depois», contudo, nunca chegava.

Pela manhã, ainda em jejum, os mesmos problemas lhe apareciam tão insolúveis e terríveis como sempre, e ei-lo que se dava pressa, então, de pegar num livro, e, se alguém o vinha visitar, ficava encantado.


Às vezes lembrava-se de ter ouvido contar que os soldados na guerra, nas linhas avançadas, sob o fogo do inimigo, quando ociosos, procuravam uma ocupação qualquer para mais facilmente esquecerem o perigo. A seus olhos os homens sempre procediam como esses soldados, na esperança de se esquecerem da vida, e davam-se à ambição, ao jogo, elaboravam leis, entretinham-se com mulheres, divertiam-se, criavam cavalos, dedicavam-se à política, ou à caça, ou ao vinho, ou aos negócios públicos.

Leon Tolstói, Edição brasileira L&PM, Livro 2, Oitava Parte, Capítulo I.

sábado, 19 de agosto de 2017

umas gotas

A chuva e sua magia de deixar homens absortos, abrigados nalgum lugar, mirando incontáveis quilômetros adiante, mesmo que só vejam paredes e calçadas molhadas. Se ela cai na espera do último ônibus, que tarda e falha; turva, a luz dos postes, refletida no asfalto, se contorce em espelho d'água. Centenas de formiginhas nadam desesperadas, formando circulozinhos, círculos e circulozões que brigam uns com os outros. Coisa nostálgica isso de chover. As gotas forçam a lembrança de outras gotas antigas, suas parentes, e com elas vêm todo o nosso passado, pingando na memória imagens, sons e cheiros de outras chuvas, outras gotas mais minhas, mais salgadas. A brisa e o vento forte vêm impregnados de humanidade, soprando no rosto os lugares por onde têm passado, de tão úmidos, num respirar mais forte, regam por dentro, lavando a alma, levando-a a outros.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

"Quando a dor parecer plena
eu irei te encontrar
numa estrada perigosa
Quando a dor bater
Quando a luz bater
Quando a dor bater
Quando a luz bater"

Lirinha

Sistema lacrimal clipe

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Nem só de vertigem é que se vive,
Cavalgando sem ter redia e cela.
Por fim, o chão nos colhe em hora triste.
Ou de logo sacamos o paraquedas.

Não! Estou decidido que não existe.
Tampouco a loucura nos encarcera,
Há uma sensatez no dedo em riste.
Sufoco os gritos na sala de espera.

Lei, moral, com regras e mandamentos.
Mesmo que para com eles zombar,
Repetimos, aplainando o cimento.

Nem só de poesia a desvairar,
Bela, vã, inutil, futilidade.
Pouco de prosa dá ar de verdade.

terça-feira, 27 de junho de 2017

Sério que você não tem medo?

-Escute-me, amigo, a lua está alta no céu. Você não tem medo? O desamparo que vem da natureza. Esse luar, pense bem, esse luar mais branco que o rosto de um morto, tão distante e silencioso, esse luar assistiu aos gritos dos primeiros monstros sobre a terra, velou sobre as águas apaziguadas dos dilúvios e das enchentes, iluminou séculos de noites e apagou-se em seculares madrugadas…Pense, meu amigo, esse luar será o mesmo espctro tranquilo quando não mais existirem as marcas dos netos dos seus bisnetos. Humilhe-se diante dele. Você apareceu um instante e ele é sempre. não sofre, amigo? Eu… eu por mim não suporto. Dói-me aqui, no centro do coração, ter que morrer um dia e, milhares de séculos depois, indiferenciado em húmus, sem olhos para o resto da eternidade, eu, EU, sem olhos para o resto da eternidade… e a lua indiferente e triunfante, mãos pálidas estendidas sobre novos homens, novas coisas, outros seres. E eu Morto! - respirei profundamente. - Pense, amigo. Agora mesmo ela está sobre o cemitério também. O cemitério, lá onde dormem todos os que foram e nunca mais serão. Lá onde um menor sussurro arrepia um vivo de terror e onde a tranquilidade das estrelas amordaça nossos gritos e estarrece nossos olhos. lá onde não se tem lágrimas nem pensamentos que exprimam a profunda miséria de acabar.

Clarice Lispector. "Mais dois bêbados".

quarta-feira, 14 de junho de 2017

O URUBU MOBILIZADO

Durante as sêcas do Sertão, o urubu
de urubu livre, passa a funcionário.
O urubu não retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
êle, que no civil que o morto claro.
 
                  2.
 
Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e conselheiro,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
Com que age, embora em pôsto subalterno:
êle, um convicto profissional liberal.
 
 João Cabral de Melo Neto

segunda-feira, 24 de abril de 2017

Beslan, Rússia

Entendo os vampiros —
Sua sede de sangue.
O homem furtou-lhe
A imagem do espelho,
Unindo a saudade
Do deus e da Besta.
Os buracos desta
Calçada suja
Conheço de cor
Dó, cor, dor mor — tal
O que é um corpo
Dentre outros trezentos?
Dos canibais, o hálito
Perfuma o planeta,
E minha TV
Sufoca uma mãe
Que chora por isso.


 

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Na Superfície

Aprendia a nadar nos meus braços, 
em água salgada.
O corpo era pequeno, leve,
O rosto de menino.
Cabelos pretos, livres, pele amorenada.
Não sabia que lembrava com tanta nitidez.
Mesmo em sonho me assustou
Reconhecê-lo naquela idade.
O sorriso maroto.
Confiava em mim como fosse
Impossível o mundo fazê-lo afundar.
Eu o protegia enquanto adulto, 
Mas não me sentia assim. 
Estava frágil.
Ele ria como sempre riu de tudo.

Um suspiro depois:
Eu quem boiava agora,
Nos braços de meu primo.
Um pouco mais velho que
Quando, pela última vez,
Rezei-lhe entre flores.
No cabelo, então, algum grisalho. 
A água, morna e calma.
Cobria boa parte de mim, 
Batendo às vezes no ouvido.
Infiltrou a minha essência, 
Preencheu um pouco do meu vazio, 
da saudade.
Ria como sempre riu de tudo.
Só que mais seriamente.
Não que estivesse triste. 
Queria me dizer algo
Ou eu queria que ele me dissesse.
Simples estar ali era um prazer
E um privilégio.
Não caberia pedir mais.
Mesmo em sonho.

Mantinha algo escondido.
Seria o às da canastra 
ou uma história inconfessável?
Impossível o mundo fazê-lo afundar.
Afogar-nos-íamos todos em dor
Antes do meu primo desfazer o sorriso.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Minha vaidade é ilimitada
e os meios para satisfazê-la
são escassos:

Não por espaço, tempo ou capital;

Com base na quantidade de perfis 
Que meu post consegue agradar.

Para um princípio econômico das redes sociais.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Perecer da tarde.
Reinício da noite.
A onda sempre
Quebra na mesma praia.
Seriam talvez novas ondas,
Noutras areias. 
Nunca saberei.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Mulher que lê

Que lê a mulher?
Uma carta, livro, um manifesto?
O que faz?
Ri sarcástica, sente muito, delira?
O que pensa a mulher?
Na saudade, na vida, na supressão,
Na virtude?
O que esconde?
Veneno, uma bomba, o brilho do olhar,
Uma poesia?
O que quer a mulher?
Gozo, recato ou, perigosamente,
Não sabe se quer?
Que lhe move?
Uma filosofia, romance, o homem,
A liberdade, a fofoca?
O que é, afinal, esta mulher que lê?
Santa, mãe, esposa, prostituta, amante,
Feminista, secretária, irmã?
Dê-me um rótulo para encerrar esta
Ameaça!

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Almenara


“Almenara – os dicionários e enciclopédias explicam – era um fogo, uma luz que se acendia nas atalaiais ou torres de antigas cidades. Para dar sinais, avisar o povo sobre o movimento de tropas inimigas ou da chegada de piratas e assaltantes, servindo, ainda, para enviar mensagens, quando transportada de uma área para outra. Anunciava também a deposição do rei. Permanentemente acesa, guiava os caminheiros da noite. É um farol de terra, um nome antigo de candeeiro, a defesa luminosa de um burgo em tempo de perigo.”
Mario da Silva Brito, na orelha de Almenara (Lucila Nogueira; 1979)

AOS OLHOS REPRESADOS PELO TANQUE


Como aves da mata, sim: selvagem.

Como a vida suspensa sob a lança.

Como os raios, a chuva e como o vento

batendo contra os álamos na sombra.



Contra os muros e grades, sim: selvagem.

Contra os falsos brasões da tolerância.

Selvagem como o eterno movimento

do mar em seu assomo de esperança.



Selvagem. Solidão que irradia

no desprezo das cômodas estâncias.

Selvagem. Como humano cata-vento

movido em primitivas reentrâncias.



Selvagem. Como a intérmina coragem

numa luta impossível como gigantes.

Selvagem como o amor solto no ventre

como o fuso que fere mas descansa.



Sim: selvagem. Por isso tão liberta

tendo auroras e guizos nas entranhas.

Sim: selvagem. Por isso tão estranha

aos olhos represados pelo tanque.



Lucila Nogueira, Almenara, 1979

Nascida no Rio de Janeiro em 30/03/1950, filha de pai português e mãe pernambucana. Falecida em 25/12/2016. Uma poetisa consagrada sem raízes, no exílio de si.