verso, prosa e frases soltas, gritos na noite, pulso que pulsa, meia-verdade, meia-justiça e um grilo falante

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

- Estás satisfeito com o que escreveu? 

REPORTAGEM 

-Estás satisfeito com o que escreveu? 
-Não sou tão canalha. 
-Quem é Ernesto Sábato? 
-Meus livros têm sido uma tentativa de responder a essa pergunta. Eu não quero obrigar-te a lê-los, mas se quiseres conhecer a resposta terá de fazê-lo. 
-Pode adiantar-nos o que está escrevendo neste momento? 
-Uma novela. 
-Já tem o título? 
-Geralmente o conheço ao final, quando acabei de escrever o livro. No momento tenho dúvidas. Pode ser O anjo das Trevas. Mas talvez Abadon, o Exterminador. 
-Um pouco sombrios, não? 
-Sim. 
-Gostaria que me respondesse algumas perguntas: que pensas do boom latino-americano? Achas que o escritor deve estar comprometido? Que conselhos daria ao escritor que começa? Preferes dias de Sol ou nublados? Identificaste com teus personagens? Escreves tuas próprias experiências ou inventas? Que pensas de Borges? O artista deve ter uma liberdade total? São produtivo os congressos de escritores? Como definirias teu estilo? Que pensas da vanguarda? 
-Vejas, meu caro, deixemos de bobagens e de uma vez por todas digamos a verdade. Quero dizer, falemos de catedrais e de prostíbulos, de esperanças e de campos de concentração. Eu, pelo menos, não estou para piadas, 
porque vou morrer. 
Quem for imortal que se permita o luxo 
de continuar dizendo besteiras. 
Eu não: tenho os dias contados(mas que homem, meu 
caro jornalista, não os têm contado, diga-me, com a 
mão sobre o coração) 
e quero fazer um balanço 
para ver o que sobra de tudo isso 
(mandrágonas ou escritores) 
e se é certo que os deuses têm mais valor 
que os vermes 
que em seguida hão de engordar com meus despojos. 
Eu não sei, não sei nada(para que enganá-lo), 
não sou tão arrogante nem tão besta 
para proclamar a superioridade dos vermes. 
(Que isso fique para os ateus de bairro) 
Te confesso que o argumento me impressiona 
pois o caixão 
o carro fúnebre 
e esse grotescos implementos da morte 
são visíveis testemunhos de nossa precariedade, 
Mas quem sabe, quem sabe, senhor jornalista! 
Poderia ser que os deuses não condescendessem 
rebaixar-se tanto, 
não acedessem a baixa demagogia 
de se fazer grosseiramente compreensíveis, 
e nos esperassem com sinistros espetáculos, 
logo que o último discurso fosse pronunciado 
e nosso solitário corpo 
para sempre abandonado a si mesmo 
(mas, anote, abandonado de verdade, não com esses 
imperfeitos, anelantes e em definitivo inúteis abandonos 
que a vida nos proporciona) aguarde o ataque inumerável 
dos vermes. 
Falemos, pois, sem medo 
mas também sem pretensões 
singelamente 
com certo sentido de humor 
que dissimule o lógico patetismo do assunto. 
Falemos de tudo um pouco. 
Quero dizer: 
desses problemáticos deuses 
dos evidentes vermes 
dos cambiantes rostos dos homens. 
Não sei lá muita coisa destes curiosos problemas 
mas o que sei o sei de verdade 
pois são experiências minhas 
e não histórias lidas em livros 
e posso falar do amor ou do medo 
como um santo de seus êxtases 
ou um mágico de teatro( em um reunião caseira, 
entre gente de confiança) 
de seus truques. 
Não esperem outra coisa 
não me critique assim tão rápido, não sejam 
perversos, caramba. 
Nem mesquinhos. 
Lhes advirto: sejam mais modestos 
pois também vocês estão destinados(e patatipatatá) 
a alimentar os vermes antes mencionados. 
De modo que, com exceção dos loucos e dos invisíveis 
deuses (talvez inexistentes) 
todos os demais farão bem em escutar-me senão com 
respeito pelo menos com condescendência. 
-Muitos leitores se perguntam, senhor Sábato, como é possível que o senhor se tenha dedicado às ciências físico-matemáticas. 
-Pois nada mais fácil de explicar. Creio já ter-te contado que Fugi do movimento stalinista em 1935, em Bruxelas, sem dinheiro, sem documentos. Guillermo Etchebehere me deu alguma ajuda, ele era trotskista, e durante algum tempo pude dormir no sótão da École Normale Supérieure, rue d’Ulm. Me lembro como se fosse hoje. Uma casa grande, mas naquele tempo não havia calefação, eu entrava pela janela às dez da noite e me deitava ali, na cama dupla do porteiro, grande cara, mas era um inverno atroz e não havia calefação assim que púnhamos muitas capas de l’Humanité por cima e cada vez que nos virávamos se ouvia o barulho de jornais(o estou ouvindo), eu vivia um grande caos e muitas vezes caminhando pelas margens do Sena pensei em me matar, mas me dava pena, acredite, o pobre Lehrmann, o porteiro alsaciano, que me dava alguns francos para comer um sanduíche daqueles compridos e um café com leite, seria uma sacanagem com o Lehrmann, compreende, assim fui agüentando até que não deu mais e com muitas precauções roubei um dia de Gilbert um tratado de análise matemática de Borel e quando comecei a estudá-lo num café, enquanto lá fora fazia frio e eu tomava um café quente, comecei a pensar 
naqueles que dizem 
que este mercado no qual vivemos 
está formado por uma única substância 
que se transmuta em árvore, criminosos e montanhas, 
tentando copiar em petrificado museu 
de idéias. 
Asseguram 
(antigos viajantes, escrutadores de pirâmides, indivíduos 
que em sonho o entreviram, algum mistagogo) que é uma 
coleção de objetos inamovíveis e estáticos: 
árvores imortais, tigres petrificados 
junto a triângulos e paralelepípedos.. 
E também um homem perfeito, 
Formados com cristais de eternidade, 
ao qual desajeitadamente quer parecer-se 
(o desenho de uma criança) 
um montão de partículas universais 
que antes era sal, água, batráquio, 
fogo e nuvem, 
excrementos de touro e cavalo, 
vísceras putrefatas em campo de batalha. 
De modo que(continuam explicando esse viajantes, 
embora agora com levíssima ironia nos olhos) com essa 
imunda mescla 
de lixo, terra e restos de comida, 
purificando-a com água e Sol, 
cuidando-a carinhosamente 
contra os depreciativos e sarcásticos poderes 
(o raio, o furacão, o mar enfurecido, a lepra) se tenta 
um grosseiro simulacro 
do homem de cristal. 
Mas embora cresça, prospere(vão bem as coisas não?) 
de repente começa a vacilar 
faz esforços desesperados 
e finalmente morre 
como ridícula caricatura, 
voltando a ser barro e excremento de vaca. 
Se não consegue ao menos a dignidade do fogo. 
-Deseja acrescentar algo a essa reportagem, senhor Sábato? Alguma preferência em teatro ou musica? Algo sobre o compromisso do escritor?
-Não, senhor, obrigado. 

Ernesto Sábato, Abadon, O Exterminador