verso, prosa e frases soltas, gritos na noite, pulso que pulsa, meia-verdade, meia-justiça e um grilo falante

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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

- Estás satisfeito com o que escreveu? 

REPORTAGEM 

-Estás satisfeito com o que escreveu? 
-Não sou tão canalha. 
-Quem é Ernesto Sábato? 
-Meus livros têm sido uma tentativa de responder a essa pergunta. Eu não quero obrigar-te a lê-los, mas se quiseres conhecer a resposta terá de fazê-lo. 
-Pode adiantar-nos o que está escrevendo neste momento? 
-Uma novela. 
-Já tem o título? 
-Geralmente o conheço ao final, quando acabei de escrever o livro. No momento tenho dúvidas. Pode ser O anjo das Trevas. Mas talvez Abadon, o Exterminador. 
-Um pouco sombrios, não? 
-Sim. 
-Gostaria que me respondesse algumas perguntas: que pensas do boom latino-americano? Achas que o escritor deve estar comprometido? Que conselhos daria ao escritor que começa? Preferes dias de Sol ou nublados? Identificaste com teus personagens? Escreves tuas próprias experiências ou inventas? Que pensas de Borges? O artista deve ter uma liberdade total? São produtivo os congressos de escritores? Como definirias teu estilo? Que pensas da vanguarda? 
-Vejas, meu caro, deixemos de bobagens e de uma vez por todas digamos a verdade. Quero dizer, falemos de catedrais e de prostíbulos, de esperanças e de campos de concentração. Eu, pelo menos, não estou para piadas, 
porque vou morrer. 
Quem for imortal que se permita o luxo 
de continuar dizendo besteiras. 
Eu não: tenho os dias contados(mas que homem, meu 
caro jornalista, não os têm contado, diga-me, com a 
mão sobre o coração) 
e quero fazer um balanço 
para ver o que sobra de tudo isso 
(mandrágonas ou escritores) 
e se é certo que os deuses têm mais valor 
que os vermes 
que em seguida hão de engordar com meus despojos. 
Eu não sei, não sei nada(para que enganá-lo), 
não sou tão arrogante nem tão besta 
para proclamar a superioridade dos vermes. 
(Que isso fique para os ateus de bairro) 
Te confesso que o argumento me impressiona 
pois o caixão 
o carro fúnebre 
e esse grotescos implementos da morte 
são visíveis testemunhos de nossa precariedade, 
Mas quem sabe, quem sabe, senhor jornalista! 
Poderia ser que os deuses não condescendessem 
rebaixar-se tanto, 
não acedessem a baixa demagogia 
de se fazer grosseiramente compreensíveis, 
e nos esperassem com sinistros espetáculos, 
logo que o último discurso fosse pronunciado 
e nosso solitário corpo 
para sempre abandonado a si mesmo 
(mas, anote, abandonado de verdade, não com esses 
imperfeitos, anelantes e em definitivo inúteis abandonos 
que a vida nos proporciona) aguarde o ataque inumerável 
dos vermes. 
Falemos, pois, sem medo 
mas também sem pretensões 
singelamente 
com certo sentido de humor 
que dissimule o lógico patetismo do assunto. 
Falemos de tudo um pouco. 
Quero dizer: 
desses problemáticos deuses 
dos evidentes vermes 
dos cambiantes rostos dos homens. 
Não sei lá muita coisa destes curiosos problemas 
mas o que sei o sei de verdade 
pois são experiências minhas 
e não histórias lidas em livros 
e posso falar do amor ou do medo 
como um santo de seus êxtases 
ou um mágico de teatro( em um reunião caseira, 
entre gente de confiança) 
de seus truques. 
Não esperem outra coisa 
não me critique assim tão rápido, não sejam 
perversos, caramba. 
Nem mesquinhos. 
Lhes advirto: sejam mais modestos 
pois também vocês estão destinados(e patatipatatá) 
a alimentar os vermes antes mencionados. 
De modo que, com exceção dos loucos e dos invisíveis 
deuses (talvez inexistentes) 
todos os demais farão bem em escutar-me senão com 
respeito pelo menos com condescendência. 
-Muitos leitores se perguntam, senhor Sábato, como é possível que o senhor se tenha dedicado às ciências físico-matemáticas. 
-Pois nada mais fácil de explicar. Creio já ter-te contado que Fugi do movimento stalinista em 1935, em Bruxelas, sem dinheiro, sem documentos. Guillermo Etchebehere me deu alguma ajuda, ele era trotskista, e durante algum tempo pude dormir no sótão da École Normale Supérieure, rue d’Ulm. Me lembro como se fosse hoje. Uma casa grande, mas naquele tempo não havia calefação, eu entrava pela janela às dez da noite e me deitava ali, na cama dupla do porteiro, grande cara, mas era um inverno atroz e não havia calefação assim que púnhamos muitas capas de l’Humanité por cima e cada vez que nos virávamos se ouvia o barulho de jornais(o estou ouvindo), eu vivia um grande caos e muitas vezes caminhando pelas margens do Sena pensei em me matar, mas me dava pena, acredite, o pobre Lehrmann, o porteiro alsaciano, que me dava alguns francos para comer um sanduíche daqueles compridos e um café com leite, seria uma sacanagem com o Lehrmann, compreende, assim fui agüentando até que não deu mais e com muitas precauções roubei um dia de Gilbert um tratado de análise matemática de Borel e quando comecei a estudá-lo num café, enquanto lá fora fazia frio e eu tomava um café quente, comecei a pensar 
naqueles que dizem 
que este mercado no qual vivemos 
está formado por uma única substância 
que se transmuta em árvore, criminosos e montanhas, 
tentando copiar em petrificado museu 
de idéias. 
Asseguram 
(antigos viajantes, escrutadores de pirâmides, indivíduos 
que em sonho o entreviram, algum mistagogo) que é uma 
coleção de objetos inamovíveis e estáticos: 
árvores imortais, tigres petrificados 
junto a triângulos e paralelepípedos.. 
E também um homem perfeito, 
Formados com cristais de eternidade, 
ao qual desajeitadamente quer parecer-se 
(o desenho de uma criança) 
um montão de partículas universais 
que antes era sal, água, batráquio, 
fogo e nuvem, 
excrementos de touro e cavalo, 
vísceras putrefatas em campo de batalha. 
De modo que(continuam explicando esse viajantes, 
embora agora com levíssima ironia nos olhos) com essa 
imunda mescla 
de lixo, terra e restos de comida, 
purificando-a com água e Sol, 
cuidando-a carinhosamente 
contra os depreciativos e sarcásticos poderes 
(o raio, o furacão, o mar enfurecido, a lepra) se tenta 
um grosseiro simulacro 
do homem de cristal. 
Mas embora cresça, prospere(vão bem as coisas não?) 
de repente começa a vacilar 
faz esforços desesperados 
e finalmente morre 
como ridícula caricatura, 
voltando a ser barro e excremento de vaca. 
Se não consegue ao menos a dignidade do fogo. 
-Deseja acrescentar algo a essa reportagem, senhor Sábato? Alguma preferência em teatro ou musica? Algo sobre o compromisso do escritor?
-Não, senhor, obrigado. 

Ernesto Sábato, Abadon, O Exterminador 

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O Corvo

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.


É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,


Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.


É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.


Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.


"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,


Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."


Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,


Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".


Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais


Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,


Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,


Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,


Libertar-se-á... nunca mais!

de Edgar Allan Poe
tradução de Fernando Pessoa

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Cântico Negro


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces 
Estendendo-me os braços, e seguros 
De que seria bom que eu os ouvisse 
Quando me dizem: "vem por aqui!" 
Eu olho-os com olhos lassos, 
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) 
E cruzo os braços, 
E nunca vou por ali... 

A minha glória é esta: 
Criar desumanidade! 
Não acompanhar ninguém. 
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade 
Com que rasguei o ventre à minha mãe 

Não, não vou por aí! Só vou por onde 
Me levam meus próprios passos... 

Se ao que busco saber nenhum de vós responde 
Por que me repetis: "vem por aqui!"? 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos, 
Redemoinhar aos ventos, 
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, 
A ir por aí... 

Se vim ao mundo, foi 
Só para desflorar florestas virgens, 
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! 
O mais que faço não vale nada. 

Como, pois sereis vós 
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem 
Para eu derrubar os meus obstáculos?... 
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, 
E vós amais o que é fácil! 
Eu amo o Longe e a Miragem, 
Amo os abismos, as torrentes, os desertos... 

Ide! Tendes estradas, 
Tendes jardins, tendes canteiros, 
Tendes pátria, tendes tectos, 
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... 
Eu tenho a minha Loucura ! 
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, 
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... 

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. 
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; 
Mas eu, que nunca principio nem acabo, 
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! 
Ninguém me peça definições! 
Ninguém me diga: "vem por aqui"! 
A minha vida é um vendaval que se soltou. 
É uma onda que se alevantou. 
É um átomo a mais que se animou... 
Não sei por onde vou, 
Não sei para onde vou 
- Sei que não vou por aí! 

José Régio

sexta-feira, 12 de junho de 2015

À minha para sempre namorada

Quando ela me falta, ou parece desinteressar-se de mim, sinto-me furtado numa parte do que sou, carecente, incompleto. Está cega toda uma parte daquilo que me forma. As estrelas podem despencar do céu, as cores desatarem no alto promessas de novas estações - são míopes os olhos meus que assistem a esses fenômenos. Este é o motivo por que vagueio, e apalpo sem reconhecer os objetos que me cercam, como um homem que houvesse perdido a própria sombra.

Crônica de uma casa assassinada
Lúcio Cardoso

Bons poetas cantam seu sentimento, os melhores cantam meu sentimento.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Espumas Flutuantes

ERA POR UMA dessas tardes em que o azul do céu oriental — é pálido e
saudoso, em que o rumor do vento nas vergas — e monótono e cadente, e o quebro da vaga
na amurada do navio— e queixoso e tétrico.

Das bandas do ocidente o sol se atufava nos mares ''como um brigue em chamas..."
e daquele vasto incêndio do crepúsculo alastrava-se a cabeça loura das ondas.

Além... os cerros de granito dessa formosa terra de Guanabara, vacilantes, a
lutarem com a onda invasora de azul, que descia das alturas... recortavam-se indecisos na
penumbra do horizonte.

Longe, inda mais longe... os cimos fantásticos da serra dos Órgãos embebiam-se
na distância sumiam-se, abismavam-se numa espécie de naufrágio celeste.

Só e triste, encostado à borda do navio, eu seguia com os olhos aquele
esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se à forma vacilante das montanhas —
derradeiras atalaias dos meus arraiais da mocidade.

E que lá, dessas terras do sul, para onde eu levara o fogo de todos os entusiasmos,
o viço de todas as ilusões, os meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças
de glória e de futuro;. . . é que dessas terras do sul, onde eu penetrara "como o moço Rafael
subindo as escadas do Vaticano";... volvia agora silencioso e alquebrado... trazendo por
única ambição—a esperança de repouso em minha pátria.

Foi então que, em face destas duas tristezas — a noite que descia dos céus,—a
solidão que subia do oceano—, recordei-me de vós, ó meus amigos!

E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra
hospitaleira, onde vagara; nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós
vivera e sentira, gemera e cantara. . .

Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!.. .

Vós bem
sabeis quanto sais efêmeros... — passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no
escuro esquecimento.

E quando — comediantes do infinito — vos obumbrais nos bastidores do abismo, o
que resta de vós?

— Uma esteira de espumas.. — flores perdidas na vasta indiferença do oceano. —
Um punhado de versos... —espumas flutuantes no dorso fero da vida!...

E o que são na verdade estes meus cantos?...

Como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos
da musa—este sopro do alto: do coração _ este pélago da alma.

E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes
rebentaram ao estalar fatídico do látego da desgraça
E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas, rutilantes do
arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo— estes
signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!

Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima
saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos!—efêmeros filhos de minh'ahna—levar
uma lembrança de mim às vossas plagas!

Prólogo de Espuma Flutuante, Castro Alves.



quinta-feira, 21 de maio de 2015

VERDADE



A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Human

I did my best to notice
When the call came down the line
Up to the platform of surrender
I was brought but i was kind
And sometimes i get nervous
When i see an open door
Close your eyes
Clear your heart

Cut the cord
Are we human?
Or are we dancer?
My sign is vital
My hands are cold
And I'm on my knees
Looking for the answer
Are we human?
Or are we dancer?

Pay my respects to grace and virtue
Send my condolences to good
Give my regards to soul and romance
They always did the best they could
And so long to devotion
You taught me everything i know
Wave goodbye
Wish me well

You got to let me go
Are we human?
Or are we dancer?
My sign is vital
My hands are cold
And I'm on my knees
Looking for the answer
Are we human?
Or are we dancer?

Will your system be alright
When you dream of home tonight?
There is no message we're receiving
Let me know is your heart still beating

Are we human?
Or are we dancer?
My sign is vital
My hands are cold
And I'm on my knees
Looking for the answer

You've got to let me know
Are we human?
Or are we dancer?
My sign is vital
My hands are cold
And I'm on my knees
Looking for the answer
Are we human
Or are we dancer?

Are we human?
Or are we dancer?

Are we human
Or are we dancer?
Eu fiz o meu melhor para perceber
quando o chamado veio
Na plataforma de entrega
Fui levado mas fui gentil
E às vezes eu fico nervoso
Quando eu vejo uma porta aberta
Feche os olhos
Limpe seu coração

Corte o cordão
Somos humanos?
Ou somos dançarinos?
Meu sinal é vital
Minhas mãos estão geladas
Eu estou de joelhos
Esperando a resposta
Somos humanos?
Ou somos dançarinos?

Apresente meu respeito para graça e virtude
Envie minhas condolências para o bem
Dê meus cumprimentos a alma e romance
Eles sempre fizeram o melhor que podiam
E adeus à devoção
Me ensinou tudo que sei
Acene adeus,
Deseje-me sorte

Você tem que me deixar ir
Somos humanos?
Ou somos dançarinos?
Meu sinal é vital
Minhas mãos estão geladas
E estou de joelhos
Procurando a resposta
Somos humanos?
Ou somos dançarinos?

Seu sistema ficará bem
Quando sonhar com o lar hoje a noite
Não há mensagem que estamos recebendo
Deixe-me saber, seu coração ainda bate?

Somos humanos?
Ou somos dançarinos?
Meu sinal é vital
Minhas mãos estão geladas
E estou de joelhos
Procurando a resposta

Você tem que me deixar saber
Somos humanos?
Ou somos dançarinos?
Meu sinal é vital
Minhas mãos estão geladas
E estou de joelhos
Procurando a resposta
Somos humanos?
Ou somos dançarinos?

Somos humanos?
Ou somos dançarinos?

Somos humanos?
Ou somos dançarinos?


 The Killers




sábado, 9 de maio de 2015

O Albatroz


Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.
Mal o põe no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrasta-se a seu lado.
Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico um cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!
O Poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
As asas de gigante impedem-no de andar.
 
Charles Baudelaire
 
 

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Os crespos fios d'ouro se esparziam
Pelo colo, que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava, e não se via;
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o Menino as almas acendia;
Pelas lisas colunas lhe trepavam
Desejos, que como hera se enrolavam.

C'um delgado sendal as partes cobre,
De quem vergonha é natural reparo,
Porém nem tudo esconde, nem descobre,
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, para que o desejo acenda o dobre,
Lhe põe diante aquele objeto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.

 Os Lusíadas, Canto II




segunda-feira, 27 de abril de 2015

Se os Tubarões Fossem Homens



“Se os tubarões fossem homens, perguntou ao senhor K. a filha de sua senhoria, eles seriam mais amáveis com os peixinhos?” “Certamente, disse ele. Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos, com todo tipo de alimento, tanto animal quanto vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre água fresca e tomariam toda espécie de medidas sanitárias. Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, lhe fariam imediatamente um curativo, para que não morresse antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem melancólicos, haveria grandes festas aquáticas de vez em quando, pois os peixinhos alegres tem melhor sabor do que os tristes. Naturalmente haveria também escolas nas gaiolas. Nessas escolas os peixinhos aprenderiam como nadar para a goela dos tubarões. Precisariam saber geografia, por exemplo, para localizar os grandes tubarões que vagueiam descansadamente pelo mar. O mais importante seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam informados de que nada existe de mais belo e mais sublime do que um peixinho que se sacrifica contente, e que todos deveriam crer nos tubarões, sobretudo quando dissessem que cuidam de sua felicidade futura. Os peixinhos saberiam que este futuro só estaria assegurado se estudassem docilmente. Acima de tudo, os peixinhos deveriam voltar toda inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista, e avisar imediatamente os tubarões, se um deles mostrasse tais tendências. Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariam guerras entre si, para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas guerras eles fariam lutar os seus peixinhos, e lhes ensinariam que há uma enorme diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões. Os peixinhos, iriam proclamar, são notoriamente mudos, mas silenciam em línguas diferentes, e por isso não podem se entender. Cada peixinho que na guerra matasse alguns outros, inimigos, que silenciam em outra língua, seria condecorado com uma pequena medalha de argaço e receberia um título de herói. Se os tubarões fossem homens, naturalmente haveria também arte entre eles. Haveria belos quadros, representando os dentes dos tubarões em cores soberbas, e suas goelas como jardim que se brinca deliciosamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos nadando com entusiasmo para as gargantas dos tubarões, e a música seria tão bela, que seus acordes todos os peixinhos, como orquestra na frente, sonhando, embalados, nos pensamentos mais doces, se precipitariam nas gargantas dos tubarões. Também não faltaria uma religião, se os tubarões fossem homens. Ela ensinaria que a verdadeira vida dos peixinhos começa apenas na barriga dos tubarões. Além disso se os tubarões fossem homens também acabaria a idéia de que os peixinhos são iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores poderiam inclusive comer os maiores. Isso seria agradável para os tubarões, pois eles teriam com maior freqüência, bocados maiores para comer. E os peixinhos maiores detentores de cargos, cuidariam da ordem entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, construtores de gaiolas, etc. Em suma, haveria uma civilização no mar, se os tubarões fossem homens.”

Bertold Brecht 
Antologia Poética do Autor.



quarta-feira, 8 de abril de 2015

Egoísta

Se você acha que tem pouca sorte
Se lhe preocupa a doença ou a morte
Se você sente receio do inferno
Do fogo eterno, de Deus, do mal
Eu sou estrela no abismo do espaço
O que eu quero é o que eu penso e o que eu faço
Onde eu tô não há bicho papão não
Eu vou sempre avante no nada infinito
Flamejando meu rock, o meu grito
Minha espada é a guitarra na mão

Se o que você quer em sua vida é só paz
Muitas doçuras, seu nome em cartaz
E fica arretado se o açúcar demora
E você chora, você reza, você pede, implora
Enquanto eu provo sempre o vinagre e o vinho
Eu quero é ter tentação no caminho
Pois o homem é o exercício que faz
Eu sei, sei que o mais puro gosto do mel
É apenas defeito do fel
E que a guerra é produto da paz

O que eu como a prato pleno
Bem pode ser o seu veneno
Mas como vai você saber... sem tentar?

Se você acha o que eu digo fascista
Mista, simplista ou antissocialista
Eu admito, você tá na pista

eu sou ista, eu sou ego
eu sou ista, eu sou ego
Eu sou egoísta
Por que não... Por que não...
Por que não... Por que não...

Raul Seixas