verso, prosa e frases soltas, gritos na noite, pulso que pulsa, meia-verdade, meia-justiça e um grilo falante

quinta-feira, 25 de junho de 2015

No limite da eslasticidade



Pensei às vezes que não iria suportar. 
Pesada, mas chegou,  
Qual  borracha no máximo de tensão, 
Corda da viola em último agudo,
Pronta para estourar. 
Foi difícil. 
"Levou todas as minhas forças apenas para ficar de pé."
Pesada, mas chegou. 
Ferro em brasa no dorso cru. 
Precisei ver nos olhos do criador, 
Sentir o hálito frio, 
A fraqueza do espécime. 
Foi difícil.
Deram-me pílulas para esquecer
dormir à noite. 

A inércia em toda sua dor,
Que não tem idade. 
No limite da elasticidade. 

Foi pesada, mas chegou. 



® poema registrado

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Cântico Negro


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces 
Estendendo-me os braços, e seguros 
De que seria bom que eu os ouvisse 
Quando me dizem: "vem por aqui!" 
Eu olho-os com olhos lassos, 
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) 
E cruzo os braços, 
E nunca vou por ali... 

A minha glória é esta: 
Criar desumanidade! 
Não acompanhar ninguém. 
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade 
Com que rasguei o ventre à minha mãe 

Não, não vou por aí! Só vou por onde 
Me levam meus próprios passos... 

Se ao que busco saber nenhum de vós responde 
Por que me repetis: "vem por aqui!"? 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos, 
Redemoinhar aos ventos, 
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, 
A ir por aí... 

Se vim ao mundo, foi 
Só para desflorar florestas virgens, 
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! 
O mais que faço não vale nada. 

Como, pois sereis vós 
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem 
Para eu derrubar os meus obstáculos?... 
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, 
E vós amais o que é fácil! 
Eu amo o Longe e a Miragem, 
Amo os abismos, as torrentes, os desertos... 

Ide! Tendes estradas, 
Tendes jardins, tendes canteiros, 
Tendes pátria, tendes tectos, 
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... 
Eu tenho a minha Loucura ! 
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, 
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... 

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. 
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; 
Mas eu, que nunca principio nem acabo, 
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções! 
Ninguém me peça definições! 
Ninguém me diga: "vem por aqui"! 
A minha vida é um vendaval que se soltou. 
É uma onda que se alevantou. 
É um átomo a mais que se animou... 
Não sei por onde vou, 
Não sei para onde vou 
- Sei que não vou por aí! 

José Régio

sexta-feira, 12 de junho de 2015

À minha para sempre namorada

Quando ela me falta, ou parece desinteressar-se de mim, sinto-me furtado numa parte do que sou, carecente, incompleto. Está cega toda uma parte daquilo que me forma. As estrelas podem despencar do céu, as cores desatarem no alto promessas de novas estações - são míopes os olhos meus que assistem a esses fenômenos. Este é o motivo por que vagueio, e apalpo sem reconhecer os objetos que me cercam, como um homem que houvesse perdido a própria sombra.

Crônica de uma casa assassinada
Lúcio Cardoso

Bons poetas cantam seu sentimento, os melhores cantam meu sentimento.

Estrela do Oswaldo Cruz

Uma estrela quebrou
Estilhaço voou
Ferindo o amor em mim

Na Alameda ou jardim
Sorriso era de graça
Doçura a quem sangrava
Pastores ou atrizes

Dessa estrela-lembrança
Guardo alguma esperança
De mais dias felizes



 ® poema registrado

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Espumas Flutuantes

ERA POR UMA dessas tardes em que o azul do céu oriental — é pálido e
saudoso, em que o rumor do vento nas vergas — e monótono e cadente, e o quebro da vaga
na amurada do navio— e queixoso e tétrico.

Das bandas do ocidente o sol se atufava nos mares ''como um brigue em chamas..."
e daquele vasto incêndio do crepúsculo alastrava-se a cabeça loura das ondas.

Além... os cerros de granito dessa formosa terra de Guanabara, vacilantes, a
lutarem com a onda invasora de azul, que descia das alturas... recortavam-se indecisos na
penumbra do horizonte.

Longe, inda mais longe... os cimos fantásticos da serra dos Órgãos embebiam-se
na distância sumiam-se, abismavam-se numa espécie de naufrágio celeste.

Só e triste, encostado à borda do navio, eu seguia com os olhos aquele
esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se à forma vacilante das montanhas —
derradeiras atalaias dos meus arraiais da mocidade.

E que lá, dessas terras do sul, para onde eu levara o fogo de todos os entusiasmos,
o viço de todas as ilusões, os meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças
de glória e de futuro;. . . é que dessas terras do sul, onde eu penetrara "como o moço Rafael
subindo as escadas do Vaticano";... volvia agora silencioso e alquebrado... trazendo por
única ambição—a esperança de repouso em minha pátria.

Foi então que, em face destas duas tristezas — a noite que descia dos céus,—a
solidão que subia do oceano—, recordei-me de vós, ó meus amigos!

E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra
hospitaleira, onde vagara; nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós
vivera e sentira, gemera e cantara. . .

Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!.. .

Vós bem
sabeis quanto sais efêmeros... — passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no
escuro esquecimento.

E quando — comediantes do infinito — vos obumbrais nos bastidores do abismo, o
que resta de vós?

— Uma esteira de espumas.. — flores perdidas na vasta indiferença do oceano. —
Um punhado de versos... —espumas flutuantes no dorso fero da vida!...

E o que são na verdade estes meus cantos?...

Como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos
da musa—este sopro do alto: do coração _ este pélago da alma.

E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes
rebentaram ao estalar fatídico do látego da desgraça
E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas, rutilantes do
arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo— estes
signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!

Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima
saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos!—efêmeros filhos de minh'ahna—levar
uma lembrança de mim às vossas plagas!

Prólogo de Espuma Flutuante, Castro Alves.



segunda-feira, 8 de junho de 2015

O otimista e o pessimista

O pensador Carl Sagan estava exultante por conseguir que um foguete que iria ser lançado ao espaço levasse uma placa com os dizeres: "Viemos em Paz para Toda a Humanidade".  J. G. Ballard escritor pessimista inveterado,  desde que viveu de perto os horrores da segunda guerra, quando soube do feito de Sagan, comentou: "Se eu fosse marciano, começava logo a fugir".

Isso me lembra a história do menino rico que estava triste depois de ganhar uma bike bem equipada e reluzente.  Quando  perguntado a razão de estar cabisbaixo, disse que agora a bicicleta estava nova,  mas que iria envelhecer, enferrujar, pior, poderia lhe  causar um acidente.

Na casa ao lado,  um menino pobre estava radiante com o presente que recebera: uma latinha com estrume. A quem passasse pela rua ele inquiria: "Você viu por aí meu cavalo?"


sexta-feira, 5 de junho de 2015

poesia não muda o mundo imediatamente

A poesia não muda o mundo imediatamente. Mas a leitura de um bom poema sempre modifica algo em nós. Não somos mais os mesmos quando uma palavra bela, exigente e única impõe sua presença, objeto único, à nossa frente.


Luzilá Gonçalves



Mulher lendo.  Monet. 

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Da virtude amesquinhadora

Passo no meio desta gente e guardo os olhos abertos: eles não me perdoam que eu não inveje suas virtudes.
Procuram morder-me, porque lhes digo: “Para gente pequena, são necessárias virtudes pequenas” — e porque custo a compreender que gente pequena seja necessária! (...)
Cortês, sou eu com elas, bem como paciente com todos os pequenos aborrecimentos: espinhar-se com o que é pequeno parece-me sabedoria de ouriço. (...)
E entre eles também aprendi isto: porta-se o louvador como se retribuísse algo, mas, na verdade, quer receber mais presentes! (...)
Passo no meio desta gente e guardo os olhos abertos: tornaram-se mais pequenos, cada vez mais pequenos: mas isso se deve à sua doutrina da felicidade e da virtude.
É que são modestos também na virtude — pois querem o bem-estar. Mas somente uma virtude modesta condiz com o bem-estar. (...)
“Eu sirvo, tu serves, ele serve” — assim reza, aqui também, a hipocresia dos dominantes — e ai, quando o primeiro senhor é somente o primeiro servidor! (...)
“Colocamos a nossa cadeira no meio”, diz-me o seu sorrizinho de contentamento, “e tão longe dos gladiadores morrentes quanto dos porcos satisfeitos.”
Isto, porém, é mediocridade — muito embora se chame moderação.


Nietzsche em Assim Falou Zaratustra

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Mensageiro

E se pessoas fossem anjos, 
anjos sem asas, 
anjos sem Deus e sem pecados? 

Privados do voo de Ícaro, 
buscassem eternamente, 
de todas as formas, 
a liberdade, 
o desprendimento 
dos solos e dos sólidos, 
dos meios e dos fins? 

E se a única maneira 
de aplacar essa angústia 
fosse, de bom grado, 
vendar os olhos, 
amarrar as mãos às costas, 
trancafiar-se em um calabouço, 
em outro anjo: 

O amor.