verso, prosa e frases soltas, gritos na noite, pulso que pulsa, meia-verdade, meia-justiça e um grilo falante

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Da Generosidade

A Shel Silverstein
Dei-te
Minhas flores, meus frutos,
Os dias mais felizes.
Saboreaste e  partiste

Dei-te
Meus galhos, meu vigor,
O viço da juventude.
Partiste e usufruíste

Dei-te
Meu tronco, minhas ideias,
As melhores histórias.
Simplesmente me partiste

Daria
As raízes, minha vida,
Minh'alma,
Se pedisses e partisses.

Tudo, porque,
Outrora,
Um sentido
Comigo
Repartiste.



segunda-feira, 27 de abril de 2015

Se os Tubarões Fossem Homens



“Se os tubarões fossem homens, perguntou ao senhor K. a filha de sua senhoria, eles seriam mais amáveis com os peixinhos?” “Certamente, disse ele. Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos, com todo tipo de alimento, tanto animal quanto vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre água fresca e tomariam toda espécie de medidas sanitárias. Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, lhe fariam imediatamente um curativo, para que não morresse antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem melancólicos, haveria grandes festas aquáticas de vez em quando, pois os peixinhos alegres tem melhor sabor do que os tristes. Naturalmente haveria também escolas nas gaiolas. Nessas escolas os peixinhos aprenderiam como nadar para a goela dos tubarões. Precisariam saber geografia, por exemplo, para localizar os grandes tubarões que vagueiam descansadamente pelo mar. O mais importante seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam informados de que nada existe de mais belo e mais sublime do que um peixinho que se sacrifica contente, e que todos deveriam crer nos tubarões, sobretudo quando dissessem que cuidam de sua felicidade futura. Os peixinhos saberiam que este futuro só estaria assegurado se estudassem docilmente. Acima de tudo, os peixinhos deveriam voltar toda inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista, e avisar imediatamente os tubarões, se um deles mostrasse tais tendências. Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariam guerras entre si, para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas guerras eles fariam lutar os seus peixinhos, e lhes ensinariam que há uma enorme diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões. Os peixinhos, iriam proclamar, são notoriamente mudos, mas silenciam em línguas diferentes, e por isso não podem se entender. Cada peixinho que na guerra matasse alguns outros, inimigos, que silenciam em outra língua, seria condecorado com uma pequena medalha de argaço e receberia um título de herói. Se os tubarões fossem homens, naturalmente haveria também arte entre eles. Haveria belos quadros, representando os dentes dos tubarões em cores soberbas, e suas goelas como jardim que se brinca deliciosamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos nadando com entusiasmo para as gargantas dos tubarões, e a música seria tão bela, que seus acordes todos os peixinhos, como orquestra na frente, sonhando, embalados, nos pensamentos mais doces, se precipitariam nas gargantas dos tubarões. Também não faltaria uma religião, se os tubarões fossem homens. Ela ensinaria que a verdadeira vida dos peixinhos começa apenas na barriga dos tubarões. Além disso se os tubarões fossem homens também acabaria a idéia de que os peixinhos são iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores poderiam inclusive comer os maiores. Isso seria agradável para os tubarões, pois eles teriam com maior freqüência, bocados maiores para comer. E os peixinhos maiores detentores de cargos, cuidariam da ordem entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, construtores de gaiolas, etc. Em suma, haveria uma civilização no mar, se os tubarões fossem homens.”

Bertold Brecht 
Antologia Poética do Autor.



sexta-feira, 24 de abril de 2015

De menino a pai foi uma estrada que pintaram di-
versos.

O chão é enorme e o motorista tem pressa.

Consigo vai o desejo de rever o filho que foi
nos risos do filho seu e a certeza de que seu
amor é antigo como esse chão sob as rodas.



quarta-feira, 22 de abril de 2015

Círculo da Infância

Carrossel!
Escarcéu de luzes,
Risos pós lágrimas,
Quem não viver
nesta fica
pra outra rodada.

É cavalo
Cavalão
Cavalinho
Sobe e desce
Charrete
Carrinho.

Flash de pai,
Grito de vó,
Mão na mão
da mãe
do menino.

Gira o verde
A vermelha
O laranja
A amarela
O Pequeno Príncipe
A Hello Kitty.

Carrossel!
Gira no parque,
na praça.
Gira na feira,
no centro
no interior
(de mim).

Felicidade,
que há longa data
Gira
este pouco tempo.


segunda-feira, 20 de abril de 2015

Éramos
Éros
Eu
E
Eva,
Éramos
Erva
Eu
E
Ela,
Erramos
Éros
Eretos
Erratas,
Eva
E
Eu,
Erguemos
E
Erramos
Eremitas

Eras
E
Eras


sexta-feira, 17 de abril de 2015

Se

Se fosse visível
O raio de sol
Que me atravessa quando sorris,

Se fosse dizível
A dor que sinto
Quando dói em ti,

Ou audíveis
As palavras que sussurro
Ao te ver dormir,

Se fosse desenhável
A ternura que sinto
Quando estou contigo,

Ou expressável
A magia de tocar
A tua pele,

Se fosse mensurável
A saudade na ausência 
e a mais estranha saudade 
que tinha antes de te conhecer,

Mas tudo são pálidas
sombras que saem
da minha boca
e da minha pena.


segunda-feira, 13 de abril de 2015

Domingueira

Domingo. Final da tarde. Da varanda observo a cidade que se derrama lá fora. Na rede, balançam eu e meu tédio. Por ser mais pesado, ele vai embaixo, comigo no colo. Até as árvores se movem lentamente. Vejo um dedo de mar rodeado por prédios de todos os lados. É uma cidade fantasma ou a preguiça fez outras vítimas? Cada balançar na rede a penumbra avança. Tomo coragem, levanto a cabeça e verifico a situação na janela da área de serviço - fundos do apartamento. Praquelas bandas o dia insiste ao fundo do horizonte, borrando de amarelo escuro as pontas das casas, tornando pro marrom, com a noite pintada de azul escuro que invade por cima. Umas luzes ao acenderem denunciam existência de vida pré-segunda-feira. Dou-me conta, de repente, por que os poetas e os apaixonados se encantam com o crepúsculo. A esta hora, nossos olhos acariciam o tempo. O Senhor, sempre faceiro e fugidio, revela um instante o instante. Para celebrar o momento conosco, a rede, o tédio e eu, eis que surge uma lua que mal cabe na varanda.


sexta-feira, 10 de abril de 2015

Sua mão mergulha em mim, nas águas turvas do sentir
Submersa, remexe, caminha e afunda um pouco os dedos na areia
Buscando alguma pedrinha, marisco, talvez pérola
Em forma de garra, vai arrastando, trilhando o solo
Cavando, cavando, termina por encontrar um objeto
Inexplicavelmente o mundo é abalado
Treme a terra, fortes ondas são desencadeadas, o céu fecha-se em tempestade
Assustada, não concebe ser a causadora dessa cena bestial
Ainda assim, solta o que preso estava,
Ao desenterrar as mãos percebe que seu braço estava mais a fundo que pensava
O mundo aos poucos torna a normalidade
Entretanto, seu braço continua a brotar da terra encharcada
É isso, você compreende finalmente, seu corpo cresceu de tal forma que, comprimido dentro de seu punho, o centro do meu mundo tinha feito tudo mais chorar.





quarta-feira, 8 de abril de 2015

Egoísta

Se você acha que tem pouca sorte
Se lhe preocupa a doença ou a morte
Se você sente receio do inferno
Do fogo eterno, de Deus, do mal
Eu sou estrela no abismo do espaço
O que eu quero é o que eu penso e o que eu faço
Onde eu tô não há bicho papão não
Eu vou sempre avante no nada infinito
Flamejando meu rock, o meu grito
Minha espada é a guitarra na mão

Se o que você quer em sua vida é só paz
Muitas doçuras, seu nome em cartaz
E fica arretado se o açúcar demora
E você chora, você reza, você pede, implora
Enquanto eu provo sempre o vinagre e o vinho
Eu quero é ter tentação no caminho
Pois o homem é o exercício que faz
Eu sei, sei que o mais puro gosto do mel
É apenas defeito do fel
E que a guerra é produto da paz

O que eu como a prato pleno
Bem pode ser o seu veneno
Mas como vai você saber... sem tentar?

Se você acha o que eu digo fascista
Mista, simplista ou antissocialista
Eu admito, você tá na pista

eu sou ista, eu sou ego
eu sou ista, eu sou ego
Eu sou egoísta
Por que não... Por que não...
Por que não... Por que não...

Raul Seixas


segunda-feira, 6 de abril de 2015

Soneto da Fênix


Ave Fênix, destrói os receios, queima a dor,
Trai a verdade. Risca o infinito azul.
Extrema, porém calma, põe a vida a dispor.
Devora a morte, não tem norte, não tem sul.
Ave, Fênix! Prosterno-me a seu louvor.
Sob suas garras, eleva cá meu corpo nu.
Desensina a fugir, me mostra toda cor,
Revolve minha carne e devora a cru.

Haver, Fênix, composto sua e minh’alma.
Nas veias, há de pulsar nosso sangue unido,
Adubando com cinzas o amanhecer.

Ah, Fênix, vi meu medo abatido em amálgama
À sua esperança. Vi ao longe: eu ungido 
Em fogo. Morto, sempre; eterno renascer.


sábado, 4 de abril de 2015

My Iraq


Quero uma poesia de olhos fechados, que não veja hipocrisias, atrocidades, que não veja nada Uma poesia alienígena, que não seja desse mundo nem tente entendê-lo Num papel que as balas não furem e as crianças, desesperadas, desmembradas, decapitadas, não sujem de sangue Não! Não quero papel algum, é resquício que nos incrimina, todos os homens Quero palavras sustentadas no vazio, sem lastro algum com a dor, a vida, ou seu extermínio Quero frases eternas, que nunca foram escritas, e nunca serão apagadas Velhos versos da Torre de Marfim, neo-simbolistas contextualizados Quero um poema que tenha vergonha de ser humano.


quinta-feira, 2 de abril de 2015

A lua, os meninos e o mar.

Receita caseira para uma boa publicação

Recolha da gaveta os textos que escreveu quando jovem. Também funciona com aqueles gravados num diretório remoto, se você não perdeu quando trocou de computador pela quinta vez. Neste caso, imprima. Reúna todos numa grande bacia. Acrescente 5 l de experiência e duas gotas de bom-senso (cuidado para não exagerar). Deixe de molho por aproximadamente 23 anos. Com auxílio de uma pinça grande, retire-os do recipiente delicadamente. É provável que os papéis estejam meio frágeis. Estenda um a um no varal do anti-heroísmo (se for o do seu vizinho, melhor ainda). Depois de algumas horas secando na sombra, todos os textos em que se consiga ler algo além do inconformismo sem sentido estão prontos para publicação! Entretanto, caso tenha restado pouca substância literária, não se chateie. Você agora tem todos os ingredientes para tentar de novo.