verso, prosa e frases soltas, gritos na noite, pulso que pulsa, meia-verdade, meia-justiça e um grilo falante

sábado, 19 de novembro de 2016

Hilel, o Ancião, 60 a.C.

"Se eu não sou por mim mesmo, que será de mim? E quando eu sou somente para mim, quem sou eu? E se não for agora, quando?"

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Estrela da Manhã

Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã ?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda a parte
Digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã
Virgem mal-sexuada
Atribuladora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos
Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras
Com os gregos e os troianos
Com o padre e o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto
Depois pecai comigo
Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas
comerei terra e direi coisas de uma
ternura tão simples
que tu desfalecerás
Procurem por toda a parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.

Manuel Bandeira

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Queria tocar suavemente,
sinto que deve ferir.
Falar palavras doces,
que não se há de ouvir.
Mostrar minha verdade,
que está por vir.

Mas não posso falar, tocar ou mentir.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

O egoísta merece morrer sozinho. Estará, enfim, na companhia de si mesmo.

Será


Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que é tudo isso em vão?
Será que vamos conseguir vencer?
Nos perderemos entre monstros
Da nossa própria criação?
Serão noites inteiras
Talvez por medo da escuridão
Ficaremos acordados
Imaginando alguma solução
Pra que esse nosso egoísmo
Não destrua nosso coração

Brigar pra quê
Se é sem querer
Quem é que vai nos proteger?
Será que vamos ter
Que responder
Pelos erros a mais
Eu e você?

...

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

ULISSES

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo -
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade.
E a fecundá-la decorre.
Embaixo, a vida, metade
De nada, morre.

Fernando Pessoa

sábado, 29 de outubro de 2016

No preto e no branco

No preto e no branco
Do escuro do quarto,
Dorme calmo o rosto
Belo. Salvo aqui
De luz e paixões.

É branco no preto
Do escuro do quarto.
O rosto respira
Mesmo ar que eu.
Inspiração dela,
Inspiração minha.

É preto no branco
Do escuro do quarto.
As feições são poucas.
Reverso do espelho.
Mais miro o que foi
E em mim permanece —
Qual vida de cego.

Em algumas cores
Do abajur acesso,
Me vem a saudade
De segundos antes
Quando a vi sorrir.
Acaricio o sono,
A pele e o amor.
Dourados.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

- Estás satisfeito com o que escreveu? 

REPORTAGEM 

-Estás satisfeito com o que escreveu? 
-Não sou tão canalha. 
-Quem é Ernesto Sábato? 
-Meus livros têm sido uma tentativa de responder a essa pergunta. Eu não quero obrigar-te a lê-los, mas se quiseres conhecer a resposta terá de fazê-lo. 
-Pode adiantar-nos o que está escrevendo neste momento? 
-Uma novela. 
-Já tem o título? 
-Geralmente o conheço ao final, quando acabei de escrever o livro. No momento tenho dúvidas. Pode ser O anjo das Trevas. Mas talvez Abadon, o Exterminador. 
-Um pouco sombrios, não? 
-Sim. 
-Gostaria que me respondesse algumas perguntas: que pensas do boom latino-americano? Achas que o escritor deve estar comprometido? Que conselhos daria ao escritor que começa? Preferes dias de Sol ou nublados? Identificaste com teus personagens? Escreves tuas próprias experiências ou inventas? Que pensas de Borges? O artista deve ter uma liberdade total? São produtivo os congressos de escritores? Como definirias teu estilo? Que pensas da vanguarda? 
-Vejas, meu caro, deixemos de bobagens e de uma vez por todas digamos a verdade. Quero dizer, falemos de catedrais e de prostíbulos, de esperanças e de campos de concentração. Eu, pelo menos, não estou para piadas, 
porque vou morrer. 
Quem for imortal que se permita o luxo 
de continuar dizendo besteiras. 
Eu não: tenho os dias contados(mas que homem, meu 
caro jornalista, não os têm contado, diga-me, com a 
mão sobre o coração) 
e quero fazer um balanço 
para ver o que sobra de tudo isso 
(mandrágonas ou escritores) 
e se é certo que os deuses têm mais valor 
que os vermes 
que em seguida hão de engordar com meus despojos. 
Eu não sei, não sei nada(para que enganá-lo), 
não sou tão arrogante nem tão besta 
para proclamar a superioridade dos vermes. 
(Que isso fique para os ateus de bairro) 
Te confesso que o argumento me impressiona 
pois o caixão 
o carro fúnebre 
e esse grotescos implementos da morte 
são visíveis testemunhos de nossa precariedade, 
Mas quem sabe, quem sabe, senhor jornalista! 
Poderia ser que os deuses não condescendessem 
rebaixar-se tanto, 
não acedessem a baixa demagogia 
de se fazer grosseiramente compreensíveis, 
e nos esperassem com sinistros espetáculos, 
logo que o último discurso fosse pronunciado 
e nosso solitário corpo 
para sempre abandonado a si mesmo 
(mas, anote, abandonado de verdade, não com esses 
imperfeitos, anelantes e em definitivo inúteis abandonos 
que a vida nos proporciona) aguarde o ataque inumerável 
dos vermes. 
Falemos, pois, sem medo 
mas também sem pretensões 
singelamente 
com certo sentido de humor 
que dissimule o lógico patetismo do assunto. 
Falemos de tudo um pouco. 
Quero dizer: 
desses problemáticos deuses 
dos evidentes vermes 
dos cambiantes rostos dos homens. 
Não sei lá muita coisa destes curiosos problemas 
mas o que sei o sei de verdade 
pois são experiências minhas 
e não histórias lidas em livros 
e posso falar do amor ou do medo 
como um santo de seus êxtases 
ou um mágico de teatro( em um reunião caseira, 
entre gente de confiança) 
de seus truques. 
Não esperem outra coisa 
não me critique assim tão rápido, não sejam 
perversos, caramba. 
Nem mesquinhos. 
Lhes advirto: sejam mais modestos 
pois também vocês estão destinados(e patatipatatá) 
a alimentar os vermes antes mencionados. 
De modo que, com exceção dos loucos e dos invisíveis 
deuses (talvez inexistentes) 
todos os demais farão bem em escutar-me senão com 
respeito pelo menos com condescendência. 
-Muitos leitores se perguntam, senhor Sábato, como é possível que o senhor se tenha dedicado às ciências físico-matemáticas. 
-Pois nada mais fácil de explicar. Creio já ter-te contado que Fugi do movimento stalinista em 1935, em Bruxelas, sem dinheiro, sem documentos. Guillermo Etchebehere me deu alguma ajuda, ele era trotskista, e durante algum tempo pude dormir no sótão da École Normale Supérieure, rue d’Ulm. Me lembro como se fosse hoje. Uma casa grande, mas naquele tempo não havia calefação, eu entrava pela janela às dez da noite e me deitava ali, na cama dupla do porteiro, grande cara, mas era um inverno atroz e não havia calefação assim que púnhamos muitas capas de l’Humanité por cima e cada vez que nos virávamos se ouvia o barulho de jornais(o estou ouvindo), eu vivia um grande caos e muitas vezes caminhando pelas margens do Sena pensei em me matar, mas me dava pena, acredite, o pobre Lehrmann, o porteiro alsaciano, que me dava alguns francos para comer um sanduíche daqueles compridos e um café com leite, seria uma sacanagem com o Lehrmann, compreende, assim fui agüentando até que não deu mais e com muitas precauções roubei um dia de Gilbert um tratado de análise matemática de Borel e quando comecei a estudá-lo num café, enquanto lá fora fazia frio e eu tomava um café quente, comecei a pensar 
naqueles que dizem 
que este mercado no qual vivemos 
está formado por uma única substância 
que se transmuta em árvore, criminosos e montanhas, 
tentando copiar em petrificado museu 
de idéias. 
Asseguram 
(antigos viajantes, escrutadores de pirâmides, indivíduos 
que em sonho o entreviram, algum mistagogo) que é uma 
coleção de objetos inamovíveis e estáticos: 
árvores imortais, tigres petrificados 
junto a triângulos e paralelepípedos.. 
E também um homem perfeito, 
Formados com cristais de eternidade, 
ao qual desajeitadamente quer parecer-se 
(o desenho de uma criança) 
um montão de partículas universais 
que antes era sal, água, batráquio, 
fogo e nuvem, 
excrementos de touro e cavalo, 
vísceras putrefatas em campo de batalha. 
De modo que(continuam explicando esse viajantes, 
embora agora com levíssima ironia nos olhos) com essa 
imunda mescla 
de lixo, terra e restos de comida, 
purificando-a com água e Sol, 
cuidando-a carinhosamente 
contra os depreciativos e sarcásticos poderes 
(o raio, o furacão, o mar enfurecido, a lepra) se tenta 
um grosseiro simulacro 
do homem de cristal. 
Mas embora cresça, prospere(vão bem as coisas não?) 
de repente começa a vacilar 
faz esforços desesperados 
e finalmente morre 
como ridícula caricatura, 
voltando a ser barro e excremento de vaca. 
Se não consegue ao menos a dignidade do fogo. 
-Deseja acrescentar algo a essa reportagem, senhor Sábato? Alguma preferência em teatro ou musica? Algo sobre o compromisso do escritor?
-Não, senhor, obrigado. 

Ernesto Sábato, Abadon, O Exterminador 

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Pescoço

Assim que levanta os braços,
A prender os cabelos,
Surge ele, intacto.

Percorrendo o nariz,
O delineamento
Entre os cabelos e a orelha,
Surge ele, tangível.

Perdido,
Achado,
Sob o emaranhar dos fios,
Sobre a força das costas.
Uma leve penugem cobre
Sua pele macia.

Convidativo vale
A beijos e mordidas,
Saliva e lágrimas.


sexta-feira, 31 de julho de 2015

Epitáfio

Não me olhem e digam: 
- era tão novo e acabou assim 
                                      [é assim que tudo acaba.
Não pensem: poxa, se não tivesse feito aquilo... talvez...
- o “se” não redime a carne, 
                                      [não a salva dos vermes.
Não declamem louvores a Deus por sobre minha carcaça: 
era sua hora...
                                      [não, não era.
Acima de tudo, não afirmem categoricamente: era um menino tão bom...
                                      [nunca somos.
Pobre morte, cercada pela comédia humana
                                      [ à direita o medo, à esquerda a hipocrisia

quinta-feira, 30 de julho de 2015

O Corvo

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.


É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,


Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.


É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.


Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.


"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,


Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."


Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,


Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".


Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais


Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,


Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,


Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"


Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,


Libertar-se-á... nunca mais!

de Edgar Allan Poe
tradução de Fernando Pessoa