Grande indignação teria sido a sua, se sete anos antes, ao
desembarcar, de regresso do estrangeiro, alguém lhe houvesse dito que nada
tinha nem a procurar nem a imaginar, pois o seu caminho de há muito estava
traçado para sempre e que fizesse ele o que fizesse viria a ser o que haviam
sido todos os outros na mesma situação do que ele! Pois não desejara, de todo o
seu coração, implantar a república na Rússia ou ser um Napoleão ou um filósofo,
ou o estratego que venceria o imperador? Não fora ele quem julgara possível a
regeneração do gênero humano e apaixonadamente a desejava, contando chegar ao
mais alto grau de aperfeiçoamento moral? Não fora ele quem fundara escolas e
hospitais e dera liberdade aos seus servos?
E em vez de tudo isso, que era ele afinal? O marido rico de
uma mulher infiel, um camarista reformado, o bom copo e o bom garfo que, à
vontade depois de um bom jantar, se põe comedidamente a criticar o governo. E
ali estava o membro do clube inglês de Moscovo e ai-jesus da sociedade
moscovita. Durante muito tempo custou-lhe a acreditar que era isso mesmo, o
tipo do camarista moscovita na inatividade, essa personagem a quem tão
profundamente desprezava sete anos antes.
Por vezes consolava-se dizendo ser apenas momentânea a vida
que levava, mas logo o aterrorizava a ideia de que muitos como ele também se
haviam dado momentaneamente a tal vida, àquela existência de clube ainda com
todos os cabelos na cabeça e todos os dentes na boca, tendo chegado ao fim
carecas e desdentados.
Nas suas horas de orgulho, quando se punha a refletir no
que era, dizia de si para consigo não se parecer em coisa alguma com esses tais
camaristas a quem outrora desprezara, com essas criaturas vulgares e estúpidas,
contentes e satisfeitas consigo próprias. «Eu, pelo contrário, atualmente, não
me sinto satisfeito com coisa alguma, continuo a desejar fazer seja o que for
para bem da humanidade», pensava então. «Mas, quem sabe? Também eles,
atualmente meus companheiros, se atormentaram assim, procurando como eu um
novo caminho na vida e, tal como eu, vítimas da força das circunstâncias, do
meio, do nascimento, escravos desta tirania dos elementos contra a qual o homem
nada pode, todos eles se viram arrastados para a situação em que eu próprio
estou», dizia de si para consigo nas horas de modéstia. E ei-lo que depois de
alguns meses de Moscovo, em vez de os desprezar, pusera-se a amá-los, a estimá-los
e a lamentá-los, como se eles fossem ele próprio, esses seus pobres
companheiros de infortúnio.
Já o não assaltavam, como antigamente, momentos de
desespero, desgosto e hipocondria. A doença, que antes se lhe manifestava por
violentos acessos, fora recalcada para o seu íntimo, sem por isso deixar de o
atormentar. «Para quê? Porquê? Que drama se representa no mundo?»,
perguntava-se a si próprio, angustiado, muitas vezes ao dia, procurando,
debalde, compreender o sentido dos fenômenos da vida. Sabendo, porém, que as
suas interrogações ficariam sem resposta, dava-se pressa em desviar delas o
pensamento. Pegava num livro, ia até ao clube ou punha-se a tagarelar com Apolo
Nikolaievitch sobre os escândalos da cidade.
«Helena Vassilievna, que nunca amou nada além do seu belo
corpo e é uma das mais estúpidas mulheres à face da Terra», repetia Pedro com
os seus botões, «aos olhos do mundo é como que o supra-sumo do espírito e da
inteligência, e toda a gente se prosterna diante dela. Napoleão Bonaparte, enquanto
foi um grande homem todos os desprezaram, e agora, que não passa de um
desprezível comediante, até o imperador Francisco lhe ‘oferece a filha por
concubina. Os Espanhóis rendem graças a Deus, por intermédio do clero católico,
por lhes haver concedido derrotarem os Franceses no dia 14 de Junho e os
Franceses fazem outro tanto, por intermédio do mesmo clero, por no mesmo dia 14
de Junho igualmente terem vencido os Espanhóis (Alusão ao cerco do Convento de
Santa Cruz, pelo marechal Ney, em Junho de 1810. (N, dos T.). Os meus irmãos
pedreiros-livres juram, pelo sangue das suas veias, estarem prontos a tudo
sacrificar por amor do próximo, e não se dignam dar um rublo sequer no
peditório para os pobres. E intrigam, tomando o partido da Astreia contra o dos
Buscadores do Maná, prestando-se a todas as baixezas para conseguirem o
verdadeiro ‘tapete’ escocês e uma acta que ninguém percebe, nem mesmo aquele
que a redigiu, nada significando, nem tendo qualquer préstimo. Todos nós
professamos a lei cristã, que manda perdoar as injúrias e amar o próximo, e em
nome desta lei erigimos em Moscovo quarenta vezes quarenta igrejas (Antigo
hábito eslavo de contar por quarenta. (N, dos T.), embora ainda ontem
açoitássemos de morte um desgraçado desertor a quem o ministro desta mesma lei
de amor e perdão, o sacerdote, deu a cruz a beijar antes do suplício.» Assim
meditava Pedro, e esta geral hipocrisia, aceita por todos, apesar do hábito que
dela tinha, todos os dias o revoltava como se fosse um caso novo.
«Sinto-as, vejo-as por todo o lado, esta hipocrisia e esta
cegueira», prosseguia ele ainda, «mas onde arranjar palavras para explicar-lhes
tudo quanto tenho a dizer-lhes? Sempre que o tentei, pude verificar que lá no
fundo eram todos da minha opinião, mas que se negavam a reconhecer o facto. É
possível que assim tenha de ser! Mas eu, que destino será o meu?...» Pedro
gozava deste triste privilégio, frequente em muitos homens, mas especialmente
nos Russos, graças ao qual, embora acreditem na verdade e no bem, com tanta
clareza vêem o mal e a mentira dos humanos que lhes faltam forças para os
combater a fundo. A seus olhos, todos os domínios da atividade humana estavam
imbuídos do mal e da mentira. Fizesse o que fizesse, tentasse o que tentasse,
sempre se sentia repelido por esta mentira perpétua: todas as vias da
atividade humana se lhe fechavam. E no entanto era preciso viver, algo tinha
de fazer, apesar de tudo. Deixar-se esmagar sob o peso destes problemas
insolúveis, eis o que se lhe afigurava horrível, e por isso mesmo, quanto mais
não fosse para esquecê-los, entregava-se ao que quer que houvesse a fazer.
Frequentava todas as sociedades, bebia muito, colecionava quadros, erigia
castelos no ar e lia, lia principalmente.
Lia, lia tudo o que lhe vinha à mão, e de tal maneira que
até mesmo à noite, quando o criado o ajudava a despir, continuava a ler. Finda
a leitura, vinha o sono, e, findo o sono, era a conversa dos salões e do clube,
da conversa passando às orgias e às mulheres, e, das orgias, voltando outra vez
à conversa, à leitura e ao vinho. Beber tornara-se para ele uma necessidade ao
mesmo tempo física e moral. Não obstante a opinião dos médicos, que o advertiam
de quanto o vinho lhe era prejudicial devido à sua corpulência, continuava a
beber furiosamente. Não se sentia bem senão quando, quase inconsciente, depois
de despejar uma boa dose de copos de vinho, sentia então por todo o corpo uma
agradável sensação de calor, e todo ele era ternura para com o semelhante e
tendência para abordar todos os problemas sem ir ao fundo de nenhum.
Só depois de haver despejado uma ou duas garrafas percebia
vagamente que aquele nó tão terrível e complicado da existência, nó que o
enchia de horror, era afinal menos medonho do que ele imaginava. Com a cabeça a
zumbir, falando, ouvindo as conversas alheias ou lendo após as refeições, a seu
lado lá estava sempre aquele nó que era preciso cortar. Apenas sob a ação do
vinho, porém, dizia de si para consigo: «Não é nada. Hei-de desatá-lo... Sim,
tenho uma explicação ao meu alcance. Por agora falta-me tempo. Depois pensarei
nisso.» Este «depois», contudo, nunca chegava.
Pela manhã, ainda em jejum, os mesmos problemas lhe
apareciam tão insolúveis e terríveis como sempre, e ei-lo que se dava pressa,
então, de pegar num livro, e, se alguém o vinha visitar, ficava encantado.
Às vezes lembrava-se de ter ouvido contar que os soldados na
guerra, nas linhas avançadas, sob o fogo do inimigo, quando ociosos, procuravam
uma ocupação qualquer para mais facilmente esquecerem o perigo. A seus olhos os
homens sempre procediam como esses soldados, na esperança de se esquecerem da
vida, e davam-se à ambição, ao jogo, elaboravam leis, entretinham-se com
mulheres, divertiam-se, criavam cavalos, dedicavam-se à política, ou à caça, ou
ao vinho, ou aos negócios públicos.
Leon Tolstói, Edição brasileira L&PM, Livro 2, Oitava Parte, Capítulo I.